Sobre a roda

Ela ainda não tem nome, mas hoje completa um ano de existência. O primeiro encontro foi bastante confuso, mas logo no primeiro encontro já ganhava moldes que até hoje vão se ajustando. O flyer era sobre uma atividade? Evento? Palestra? No restaurante de culinária africana (Simbaz) aqui em Brasília. Falava: "roda de conversa" e logo abaixo "masculinidade negra", o tema era "ser homem negro" e um psicólogo negro (Vinícius Dias) como mediador.
Como em todo evento que recebo convite fiz logo meu check list pra saber se aquilo cabia pra mim:
Restaurante africano? legal, legal!
Roda de conversa? Pô, deve rolar uma cervejinha.
Masculinidade negra? Hum, fale mais...
Ser homem negro? Esse negócio tá cheio de coisa. Vou ter que ir lá ver de qual é.

Após o check list ter sido respondido com sucesso, apesar de eu não saber muito bem do que se tratava, eu me organizei e fui para o local informado. Quando cheguei lá eu vi que tinha feito uma leitura errada do flyer, pois as cadeiras estavam em forma de um círculo. Talvez pra tal "roda de conversa", mas ainda era muito cedo pra se chegar a essa conclusão, né? Tranquilo. Peguei meu lugar e fiquei no aguardo.  Na minha cabeça era uma palestra com um psicólogo sobre a masculinidade negra e o tema "ser homem negro" outros embalar a conversa entre os participantes, tudo regado a cerveja e petiscos africanos variados. Confesso que nem comi antes de ir. Mas beleza, errei, errei rude e fiquei com uma fome que só de lembrar já dá vontade de mastigar alguma coisa. Não tinha palestra, não tinha buffet boca livre e não tinha chopp liberado. 
Pra minha surpresa era só aquilo que estava no flyer mesmo. E foi assim que eu comecei a participar de uma roda de conversa de homens negros que está fazendo minha cabeça girar mais que coruja assustada. Nunca estive num lugar em que todas as pessoas ao meu redor eram negras, num lugar em que os mais diversos temas da vida são abordados e discutidos sobre os mais diversos olhares, porém todos dentro da mesma óptica (essa foi massa, diz aí!). Você chegar num lugar e ser acolhido por seus semelhantes que entendem o que você quer dizer ao falar "sabe quando você entra num restaurante e recebe aquele olhar". Participar da criação de laços de amizades e parcerias para outras atividades. Sentar numa roda com uns trinta preto e falar sobre ancestralidade. Ouvir a história de cada um e sentir uma vibração boa que te dá energia lá seguir em frente. Saber que eu e aqueles trinta caras estamos ali mais um dia vivos e que aquele círculo é também uma celebração de vida num país em que negro é suspeito e morre até uniformizado a caminho da escola TODOS OS DIAS. Um lugar onde se conversa sobre temas delicados, temas engraçados, temas sérios e temas que nem vai tanta gente porque ainda é difícil de se falar alguma coisa. 
Já teve feijoada de confraternização, já teve bar pra dar força pra um irmão, já teve encontro em samba, em rap em festa na praça dos orixás, em teatro, em outra cidade e hoje tem a roda comemorativa de um ano. 
Infelizmente não vou poder comparecer porque ainda estou de molho da minha cirurgia. Não que a roda vá ser muito diferente sem a minha presença, porque eu aposto que deve ter gente lá que acha que sou mudo de tal calado que fico. Meu processo de absorção é diferente, fico na minha escutando e raramente dou uma contribuição. Sigo ali no meu processo de cura e fortalecimento. Juntando o bombardeio de falas e pensando como aquilo vai poder me ajudar dali pra frente. 
E foi assim que eu aceitei participar da criação do primeiro evento comemorativo do dia da consciência Negra no meu trabalho. O primeiro evento em 20 anos de instituição. É isso que a roda tem feito: história! 
Ela me incentivou a participar desse momento, assim como outras atividades também surgiram a partir dela. Até doação de absorventes para detentas já rolou! 
Hoje a roda completa mais um ciclo e eu só tenho a agradecer pela existência dela. Vou perder o bolo de aniversário - lá vai eu achando que vai ter comida gratuita de novo - mas na próxima estarei presente com o meu novo olhar para o mundo. 
Paz.

Comentários

  1. Serjão....quanta emoção de ler isso cara. Como que o "simples" fato de nos juntarmos pode proporcionar tanta coisa bacana né? Somos do coletivo, não tem jeito...obrigado por tudo irmão...muuito obrigado, de verdade!

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